Vivemos numa sociedade profundamente violenta. E a violência se dá de muitas formas (verbal, psíquica, física, econômica, social, política, cultural, sexual, religiosa, digital etc.), causando injustiça, exclusão, dor, sofrimento e morte. É verdade que no ambiente de violência generalizada em que vivemos, ninguém está completamente imune. Mas se a violência atinge todas as pessoas, nem que seja pelo sentimento comum de insegurança e medo, não atinge igualmente a todas pessoas. A violência tem classe, cor, sexo… Basta ver a população encarcerada e as vítimas da violência policial.
Quando se fala de violência, pensa-se logo em homicídio, assalto, agressão física e encarceramento. E os números são assustadores. O Atlas da Violência 2020 revela que em 2018 foram assassinadas no Brasil 57.956 pessoas. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, no primeiro semestre de 2019 a população carcerária do Brasil chegou 773,1 mil. Mais de 66% dessa população era negra. Mas não se deve esquecer que quando alguém chega a praticar ou sofrer esse tipo de violência já praticou ou sofreu muitas outras formas de violência (econômica, social, policial, sexual, psicológica, verbal etc.). Agressão física e homicídio não são um fato isolado, mas expressão extrema de um processo ou de uma cultura de violência. Ninguém nasce violento. Aprende-se a ser violento. A violência não é um dado natural, mas um processo cultural.
No contexto de violência generalizada em que vivemos, a tentação maior é combater violência com violência: grito com grito, intolerância com intolerância, agressão com agressão e, no limite, eliminação do inimigo. Tornou-se comum, mesmo entre pessoas “religiosas”, afirmações do tipo “bandido bom é bandido morto”, “direitos humanos é defender bandidagem”, “tem que sofrer”. E tem se tornado cada vez mais comum a prática de linchamentos com apoio de amplos setores da sociedade. Chegamos ao extremo de se tolerar, no parlamento, a defesa explicita de tortura e de torturadores, e de eleger um presidente que defende tortura, torturadores e milícias. O que era prática de pessoas e/ou grupos isolados tem se tornado cada vez mais política de governo.
É o próprio chefe do Estado que dissemina ódio e preconceito, desmonta políticas de defesa dos Direitos Humanos, estimula a violência policial, defende e promove o armamento da população e promulga decretos e portarias que facilitam a posse e o porte de armas. Desde o início de seu governo já formam publicadas mais 30 decretos e portarias sobre o tema. O decreto mais recente permite, entre outras coisas, que atiradores e caçadores comprem até 60 e 30 armas, respectivamente, sem autorização expressa do Exército, que cidadãos comuns podem ter até 6 armas, que policiais, agentes e guardas prisionais podem ter até 8 armas, e autoriza o aumento da compra de munição. Trata-se de um projeto político de armamento da população e de combate à violência com mais violência.
Além de ineficaz (violência gera violência) e imoral (defesa da violência, combater o crime de forma criminosa), esse tipo de política é radicalmente anti-evangélica: atenta contra a fraternidade, promove ódio, intolerância, inimizade e violência, banaliza e leva à eliminação da vida que é dom de Deus. A paz é fruto da justiça e da fraternidade e se alcança através do diálogo e da política. Nunca através da intolerância, da violência e do crime – menos ainda de uma política criminosa.
O Compêndio de Doutrina Social da Igreja adverte que “o enorme aumento das armas representa uma ameaça grave para a estabilidade e a paz” (CDSI 508), afirma que “medidas apropriadas são necessárias para o controle da produção, venda, importação e exportação de armas leves e individuais, que facilitam muitas manifestações de violência” e insiste que “é indispensável e urgente que os governos adotem regras adequadas para controlar a produção, o acúmulo, a venda e o tráfico de tais armas” (CDSI 511). E o papa Francisco, em sua encíclica Fratelli Tutti sobre a fraternidade e a amizade social, falando da importância do diálogo e da cultura do encontro, insiste na importância e necessidade de “gerar processos de encontro”: “Armemos os nossos filhos com as armas do diálogo, Vamos ensinar-lhes o bom combate do encontro” (FT 217).
O Brasil precisa de vacina, diálogo e justiça social, e não de armas!